quinta-feira, 9 de outubro de 2014

"mas livra-nos do mal" ou "porque assim nos resgatas do mal"?: o NT em hebraico, a locução כִּי אִם e um imbróglio tradutório

Um amigo, incomodado com a conjunção adversativa une as duas orações de Mt 6:13, me mandou fotos de um livro que mostram uma tradução curiosa para esse versículo da oração do Pai Nosso. Para expor a incorreção do que fez o autor (cuja identidade prefiro não expor, já que isso não muda nada no argumento), acabei mencionando algumas questões que julgo bom divulgar aqui, tais como: as traduções do NT ao hebraico e o significado da locução כִּי אִם.

Gilton,



Ótimas fotos do livro, ainda mais considerando que foram tiradas de noite! Ficou perfeitamente legível.



Vamos lá! Como eu adiantei, a metodologia do autor é bem questionável. Ele não define se traduzirá do grego ou do hebraico (talvez o explique na introdução, que eu não li), mas acaba adotando o texto hebraico para fazer a tradução. E ele usa a tradução do Novo Testamento ao hebraico de Salkinson e Ginsburg do século XIX! Isso mesmo, esse texto hebraico não é antigo. O Salkinson, inclusive, foi missionário da igreja presbiteriana da Escócia entre os judeus de Edimburgo.


Voltando ao autor brasileiro, ele traduz a frase final do versículo 13 assim: “porque assim nos resgatas do mal”. Se compararmos isso com o texto grego (ἀλλὰ ῥῦσαι ἡμᾶς ἀπὸ τοῦ πονηροῦ), não faz sentido nenhum.


Se o ἀλλὰ fica estranho pelo fato de a oração não parecer “adversativa” com relação à anterior, o “porque” fica ainda mais estranho, uma vez que o ῥῦσαι é um imperativo. Dizer “porque” e introduzir uma ordem não? Não encaixa. Por isso, ele tem que dizer “porque assim” e introduzir um verbo no modo indicativo “nos resgatas”, em vez do imperativo “resgata-nos”. O que é mais um pedido da série de pedidos da prece no texto grego, torna-se nessa tradução uma explicação do pedido anterior.


Agora, deixe-me ver o texto hebraico (do Salkinson e Ginsburg):


כִּי אִם־הַצִּילֵנוּ מִן־הָרָע


Bom, agora (só agora mesmo, enquanto escrevia) descobri o erro do tal professor! Na pressa, como ele deve ter feito, eu tinha lido só o כִּי, que poderia, em princípio, ser traduzido por “porque”. Mas ele vem em conjunto com outra partícula: כִּי אִם. É um erro compreensível. Ele tenta traduzir palavra por palavra (acho que ele diz "porque" para traduzir כִּי e "assim" para אִם), achando ser mais preciso. Mas o resultado fica bem diferente do que seria correto, pois os dois juntos formam uma locução adversativa, traduzida geralmente por “antes” ou “pelo contrário”. É a mesmíssima locução que introduz o verso 2 do Salmo 1. Confira uma tradução em português para ver como é uma ideia de oposição. E observe também que os tradutores do verso para o grego utilizaram um ἀλλὰ:


אַ֥שְֽׁרֵי־הָאִ֗ישׁ אֲשֶׁ֤ר׀ לֹ֥א הָלַךְ֮ בַּעֲצַ֪ת רְשָׁ֫עִ֥ים וּבְדֶ֣רֶךְ חַ֭טָּאִים לֹ֥א עָמָ֑ד וּבְמוֹשַׁ֥ב לֵ֜צִ֗ים לֹ֣א יָשָֽׁב׃

 כִּ֤י אִ֥ם בְּתוֹרַ֥ת יְהוָ֗ה חֶ֫פְצ֥וֹ וּֽבְתוֹרָת֥וֹ יֶהְגֶּ֗ה יוֹמָ֥ם וָלָֽיְלָה׃



μακάριος ἀνήρ ὃς οὐκ ἐπορεύθη ἐν βουλῇ ἀσεβῶν καὶ ἐν ὁδῷ ἁμαρτωλῶν οὐκ ἔστη καὶ ἐπὶ καθέδραν λοιμῶν οὐκ ἐκάθισεν

ἀλλ᾽ ἢ ἐν τῷ νόμῳ κυρίου τὸ θέλημα αὐτοῦ καὶ ἐν τῷ νόμῳ αὐτοῦ μελετήσει ἡμέρας καὶ νυκτός


Parece-me que o autor dessas páginas que você me enviou erra ao escolher trabalhar com o texto traduzido em hebraico como dotado de autoridade, e erra outra vez ao lê-lo apressadamente.


Sobre a falta de autoridade do texto hebraico, isso fica constatado quando se percebe que outra tradução mais ou menos da mesma época, a de Franz Delitzsch, faz outras escolhas lexicais para traduzir o mesmo trecho de Mateus. Sempre há opções para os tradutores. Se eu der um conto de James Joyce em português a dois tradutores hábeis no inglês, e pedir que o traduzam a esse idioma, os dois chegarão a resultados diferentes. E os resultados dos dois serão também diferentes do original do James Joyce em inglês. É fatal! Ou seja, ler Mateus em hebraico é ler opções interpretativas de um ou de outro tradutor. Não é ler o que Jesus teria dito. (Eu inclusive ainda acho mais plausível que Jesus tenha ensinado essa oração em aramaico. Mesmo sabendo que certas evidências encontradas no séc. XX fazem crer que o hebraico era mais falado do que supúnhamos antes, ainda parece-me sensato considerar que o aramaico era mais popular.)


Abandonando o hebraico, que também tem uma adversativa, entendamos a adversativa no texto grego:


καὶ μὴ εἰσενέγκῃς ἡμᾶς εἰς πειρασμόν, ἀλλὰ ῥῦσαι ἡμᾶς ἀπὸ τοῦ πονηροῦ.


Eu traduziria assim:


“E não nos conduzas para provação, mas, pelo contrário, livra-nos do mal.”


É o mesmo tipo de adversativa que há em algo como:


“Menino, não aceite bala de estranhos, mas compre frutas com o dinheiro que lhe dei.”


Primeiro uma ordem para não fazer algo, e, em seguida, uma ordem para fazer algo diferente. Não isso, mas aquilo. Em espanhol, há um conector especializado nessa relação, o sino/sino que (menciono isso, porque pode ajudar a pensar a lógica da coisa).


Agora, em que medida o mal e a provação são a mesma coisa? Quão semelhantes são? Uma coisa está contida na outra? Uma é um possível resultado da outra? São questões que podem nos ocupar por anos.


Eu fico por aqui.


Abraço!


Cesar

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