Reproduzo uma breve conversa que tive há poucos dias com alguém que não conhecia. Conversas assim se revelam oportunas para organizar pensamentos dispersos e sugerir direcionamentos pontuais para futuras reflexões. Por isso, entendo que esta poderá ser útil a alguém, mesmo contendo colocações não tão precisas de minha parte. As pequenas edições que fiz foram supressões de nomes ou referências ao contexto da conversa, que não fariam sentido aqui. Indiquei-as por colchetes vazios. Acrescentei uma correção a mim mesmo por meio de um colchete com texto em um ponto. No mais, agradeço a Ana por permitir a reprodução de nossa prosa aqui.
Ana Cristina S. Bellot de Souza
[ ], você diz [ ] que o apóstolo João e também Paulo se
tornaram cristãos. Na época em que eles viveram ainda não existia o
Cristianismo, nem o Novo Testamento, como hoje. Você faz esta colocação por que
eles aceitaram Jesus Cristo como o Messias? Ou por que esta ideia se tornou
generalizada?
Cesar
Concordo plenamente com o [
], Ana.
O fato é que enfatizamos [ ] que o
cristianismo, como religião independente e definitivamente separada do judaísmo,
não existia no século I. Essa ênfase deve fazer soar meio fora de lugar a
expressão "tornar-se cristão". Eu entendo. Mas será mesmo preciso uma
instituição específica identificada como "cristianismo" e um cânone
novo, o Novo Testamento, para que alguém "se torne cristão"? Parece
que não.
Veja que já em Atos 26:28, Agripa diz a Paulo: ἐν ὀλίγῳ με πείθεις Χριστιανὸν
ποιῆσαι, isto é, "por pouco me convences a fazer-me cristão." Parece
claro que Agripa está pensando no caso de aderir a um movimento messiânico
específico, aquele que identifica Jesus de Nazaré com o khristós/Mashiakh, que
é o único movimento difundido por Paulo.
Agora, um fato linguístico curiosíssimo é que a terminação de khristIANÓS não é
propriamente o que se esperaria de um termo grego cunhado a partir de khristós.
Soa mais como terminação latina. E é significativo que nas três ocorrências do
termo no NT não se trata de um uso afirmativo por parte de cristãos, mas sim a
partir da perspectiva dos de fora. Pode soar como tipo de acusação inclusive no
uso de 1 Pedro 4:16. Isso dá o que pensar.
Com sua licença, [ ]. Só entrei na
conversa pra trazer mais pimenta.
Abraço!
Ana
Pode participar, não tem problema. Na minha opinião, os
apóstolos não se tornaram cristãos, esta ideia veio realmente de fora, os
seguidores judeus de Jesus, como João, Paulo, etc nem pensavam nisto, pois o
Messias era o cumprimento das profecias da Bíblia Hebraica, mas, hoje a maioria
dos cristãos tem esta opinião.
Cesar
Entendo sua perspectiva, Ana. Você entende que eles não
consideravam haver nenhuma ruptura com a fé de Israel ao aceitarem a Jesus como
Cristo. Concordo. Eles sabiam ser esse um prolongamento esperado da fé
anunciada por Moisés, os profetas e os escritos. Mas mesmo sendo esperado, há
uma ruptura por causa da especificidade do evento Cristo. Essa ruptura fica
clara na introdução da Carta aos Hebreus. Se há uma nova etapa, um novo tempo
(ainda que esperado), e se alguns não o reconhecem, não haveria logo a
percepção de que se forma um grupo dentro do grupo maior? Digo, mesmo Paulo e
João reconhecendo-se como judeus para sempre, eles também não teriam
reconhecido que faziam parte de um grupo messiânico específico (que não
simplesmente esperava um messias, mas que reconhecia em Jesus o Messias)? E se
já percebiam haver esse grupo específico, que envolvia judeus e também muitos
gentios (lembremos que Paulo tem plena consciência de que a fé em Jesus Cristo
está tomando volume entre gentios - fica claro isso em Romanos), não tenderiam
a aceitar logo um nome específico? No livro de Atos é Caminho. Com o tempo,
provavelmente, "cristãos". Ainda que vindo de fora o termo (creio que
vem mesmo de fora), ele foi aceito bem depressa.
Mas, como disse, entendo e aprecio sua reflexão. E concordo que a visão de
muitos cristãos, de uma "conversão" de Paulo ou João é equivocada. Eu
diria sim que eles "se tornaram" cristãos (no sentido de que passaram
a seguir e imitar Jesus como Cristo), mas não deixaram de ser judeus. Acho o
termo "cristão" muito bonito, pois, se é mesmo um título atribuído de
fora com fins de acusação, reflete a resiliência da Igreja em tempos difíceis.
Abraço!
Só para deixar claro: Entendo que a expressão usada pelo [ ] ("tornaram-se cristãos") é
possível para falar de Paulo e João. Mas concordo com a Ana de que é uma
expressão errada SE QUISERMOS ENTENDER O TERMO "CRISTÃOS" COM TODO O
SIGNIFICADO QUE ELE CARREGA HOJE. Ou seja: eu digo que Paulo "tornou-se
cristão" entendendo o significado de "cristão" para os dias de
Paulo, quando o termo já existia. O perigo da anacronia é constante. Mas pra
isso serve o diálogo, para deixar claro o sentido pretendido.
Agora, Ana, parece-me que os seguidores judeus de Jesus já pensavam nisso sim.
Não que tenham decidido se rotular, mas porque o contexto polêmico em que se
viam envolvidos estipulava rótulos. Ora, Pedro é seguidor judeu de Jesus e
aceita ser chamado de cristão, conforme lemos em sua carta. Não acha? (1Pe
4:16)
Abraço!
Ana
Esta é uma discussão bem interessante. As duas opiniões têm
base, mas coloco a questão: e se os judeus, em sua maioria aceitassem a Jesus
como o Messias, será que eles se colocariam como cristãos? E em outra parte
você usou uma palavra bem interessante, RÓTULO. Nós temos este costume de
rotular pessoas, coisas, situações...mas percebo que a judaicidade dos
apóstolos era bem forte. O Cristianismo como instituição começou bem mais tarde
como nós sabemos. Acho que na época a palavra cristão era para mostrar que as
pessoas eram seguidoras de Cristo e seus ensinamentos dentro de uma nova
perspectiva, mas já existente no mundo que eles viviam. Você não acha que só
houve esta ruptura porque a maioria dos judeus não aceitou Jesus, e como
coloquei acima, e se eles tivessem aceito o Messias? Incógnita?!
Cesar
Ótimo, Ana. Acho que estamos pensando juntos, e isso é bom.
Gostei muito do seu comentário.
"e se os judeus, em sua maioria aceitassem a Jesus como o Messias, será
que eles se colocariam como cristãos?"
De fato, se a maioria esmagadora dos judeus aceitassem a Jesus como Messias,
parece que não seria preciso agregar novo rótulo. Os nomes que identificam
grupos específicos só existem por causa dos limites que existem entre tais
grupos e os demais. Só havia "fariseus" porque eles eram diferentes dos
"saduceus" e dos "essênios". Os seguidores de Jesus entram
nessa dinâmica e formam um novo grupo, minoritário ao que parece, com algumas
características próprias.
"Acho que na época a palavra cristão era para mostrar que as pessoas eram
seguidoras de Cristo e seus ensinamentos dentro de uma nova perspectiva, mas já
existente no mundo que eles viviam."
Precisamente isso! Algumas novas ênfases havia nas palavras de Jesus. Alguns
ensinamentos se chocavam com os dos fariseus. Outros se chocavam bem
contrariamente aos da comunidade de Qumran. Outros iam contra os saduceus. E,
assim, desde o ministério de Jesus, alguns limites, algumas diferenças já se
iam demarcando.
"mas percebo que a judaicidade dos apóstolos era bem forte"
Sim, certamente. A judaicidade de Jesus também era. O movimento Jesus=Cristo é
um movimento específico no âmbito judaico, não fora dele (embora seja também
PARA fora dele).
"Você não acha que só houve esta ruptura porque a maioria dos judeus não
aceitou Jesus, e como coloquei acima, e se eles tivessem aceito o Messias?
Incógnita?!"
Acho, como você parece achar, que não haveria ruptura entre grupos (mas sim a
inauguração de uma nova fase da judaicidade, que teria que ser reinterpretada e
relocalizada no mundo à luz desse fenômeno ultra-significativo que é a
encarnação do Logos. (veja como o judaísmo teve que se reentender a partir de
grandes eventos como o exílio babilônico, a destruição do Templo, a expulsão de
Jerusalém e, mais recentemente, a Shoá/holocausto. O fenômeno Cristo/Messias
pediria uma reestruturação gigantesca também, não? Afinal, ele não se coloca
como Mestre ou Profeta somente, mas como "cordeiro de Deus que tira o
pecado do mundo").
Mas, dando cordas à incógnita, conforme sua hipótese: os seguidores de Jesus
teriam tido o mesmo ímpeto missionário que tiveram? o judaísmo rabínico
existiria? a Mishnah teria sido escrita? e os Talmudim? (lembremos que Jesus ia
contra a tradição oral dos fariseus!) Mais textos do judaísmo de língua grega
teriam sido preservados?
Cada pergunta abre um universo de possibilidades instigantes.
Abraço!
Ana
Quero reforçar este último ponto: a 'reestruturação do
judaísmo' a partir da vinda do Messias. Hoje, quando judeus aceitam Yeshua
(Jesus) como o Messias, eles não estão fazendo isto? A maioria não se vê como
cristãos, mas como judeus messiânicos. Estou certa? Entrando pela história, e
analisando hoje, vemos que a criação do Cristianismo e seus dogmas, perdendo a
perspectiva ou o olhar judaico não foi muito bom para o Cristianismo, pois
quando dogmas são criados longe da base, cria-se fundamentos que nada tem a ver
com a Palavra de Deus.
Quanto ao ímpeto missionário, penso que sim, quando analisamos que Jesus veio
tanto para Israel como para a humanidade. Vemos isto na visão de Pedro, sobre
alimentos impuros.
São tantas questões...
Cesar
Ana,
O judaísmo messiânico é pequeno demais para se falar em reestruturação do
judaísmo (talvez somente em reinterpretação identitária dos adeptos judeus). Eu
pensei em reestruturação a partir da sua hipótese de adesão majoritária dos
judeus a Jesus como Messias. Outro ponto é que o judaísmo messiânico surge em
meio a um judaísmo que tem séculos de tradição a separá-lo dos judaísmos
existentes nos dias de Jesus ou Paulo. Poderíamos usar essa experiência como
parâmetro de comparação? No tempo de Jesus os adeptos do Jesus=Cristo eram
essênios, fariseus, samaritanos etc. Hoje o judaísmo de referência é o
rabínico.
Outra coisa, como a minoria dos adeptos do judaísmo messiânico é de judeus de
origem (dizem serem uns 20%), sendo a maioria de gentios, pode parecer, às
vezes, mais uma reestruturação do cristianismo [ou melhor, também:
reinterpretação identitária dos adeptos gentios].
Considere-se, também, que há diferenças entre diferentes grupos
judaico-messiânicos. Há doutrinas diversas existentes entre eles. (E lembre-se
que em âmbito judaico também as doutrinas surgem, evoluem e mudam. Vemos isso
na Antiguidade. Às vezes há certo maniqueísmo que atribui o nefasto ao
não-judeu e uma ideia de pureza ao judaico. A coisa é mais complicada do que
parece.)
Bom, apresento esses pontos como constatações bem difundidas por aí, só para
deixar a reflexão mais complexa, mas aí chegamos a uma questão ATUAL, sobre a
qual, [ ], não posso emitir minha opinião pessoal ou
debater.
Fico agradecido por essa conversa inteligente.
Muito prazer! Abraço!
Ana
Entendo, que todas as religiões têm pluralismo na sua
maneira de viver. O tema dos judeus messiânicos é explosivo. Quando falei em
reestruturação, é não deixar o judaísmo, mas a partir de aceitar Jesus como
Messias, ter uma nova perspectiva dentro do judaísmo. Fiquei feliz em debater
com você, [ ]
Um abraço!!!