Breve estudo do
Salmo 67: contexto, texto e aplicação
Por Cesar Rios
Contexto
O Salmo 67 era
certamente um cântico entoado no contexto da festa da colheita (Ex 23:16). O
povo hebreu se reunia para celebrar o êxito de seu trabalho agrícola, e
reconhecer nisso a bênção divina. Parece-me quase impossível precisar ano ou
mesmo século da composição. Apenas sugiro que não só foi entoada na referida
festa, mas também que pode ter sido composta com tal finalidade.
Texto
Embora
o contexto do cântico seja bem restrito de um ponto de vista geográfico e
étnico, sua mensagem é de abertura, ampliação. Diferente de outros salmos, este
não chama Deus por seu nome (יהוה), mas pelo substantivo
comum אֱלֹהִ֗ים (Deus), assim como outros tantos, é bem
verdade. Não digo, com isso, que a identidade da divindade celebrada permaneça
em aberto. O texto a define de outra forma (no verso 7). Porém, a escolha do
termo faz lembrar que os outros povos faziam coisas semelhantes na mesma época.
Eles cultuavam suas próprias divindades (seus próprios אֱלֹהִ֗ים), por vezes
especializadas na fertilidade e agricultura. O que os hebreus faziam, então,
era compreensível, e isso é fundamental para o objetivo do próprio canto. Os de
fora são praticamente convidados para a celebração do Deus dos hebreus. Para
assinalar detalhes nesse sentido e outros pontos relevantes, de início, ofereço
uma tradução do Salmo[1]:
1לַמְנַצֵּ֥ח בִּנְגִינֹ֗ת מִזְמ֥וֹר שִֽׁיר׃
2 אֱלֹהִ֗ים יְחָנֵּ֥נוּ וִֽיבָרְכֵ֑נוּ יָ֤אֵ֥ר פָּנָ֖יו
אִתָּ֣נוּ סֶֽלָה׃
3 לָדַ֣עַת בָּאָ֣רֶץ דַּרְכֶּ֑ךָ בְּכָל־גּ֜וֹיִ֗ם יְשׁוּעָתֶֽךָ׃
4 יוֹד֖וּךָ עַמִּ֥ים׀ אֱלֹהִ֑ים י֜וֹד֗וּךָ עַמִּ֥ים כֻּלָּֽם׃
5 יִֽשְׂמְח֥וּ וִֽירַנְּנ֗וּ לְאֻ֫מִּ֥ים כִּֽי־תִשְׁפֹּ֣ט עַמִּ֣ים מִישׁ֑וֹר
וּלְאֻמִּ֓ים׀ בָּאָ֖רֶץ תַּנְחֵ֣ם סֶֽלָה׃
6 יוֹד֖וּךָ עַמִּ֥ים׀ אֱלֹהִ֑ים י֜וֹד֗וּךָ עַמִּ֥ים כֻּלָּֽם׃
7 אֶ֭רֶץ נָתְנָ֣ה
יְבוּלָ֑הּ יְ֜בָרְכֵ֗נוּ אֱלֹהִ֥ים אֱלֹהֵֽינוּ׃
8 יְבָרְכֵ֥נוּ אֱלֹהִ֑ים וְיִֽירְא֥וּ אֹ֜ת֗וֹ כָּל־אַפְסֵי־אָֽרֶץ׃
1 Para o dirigente nas músicas; melodia;
canto.
2 Que Deus nos seja gracioso e nos abençoe. Que faça resplandecer seu rosto
junto a nós./
3 Para que se conheça na terra o teu caminho,
e em todos os povos a tua salvação.
4 Que os povos (a) te celebrem, Deus! Que os povos
todos (a’) te celebrem!
5 Alegrem-se e bradem as populações, pois
julgas os povos com retidão
E as
populações na terra, tu as guias./
6 Que os povos (a) te celebrem, Deus! Que os povos
todos (a’) te celebrem!
7 A terra deu seu fruto. Que Deus (b), o nosso Deus (b’), nos
abençoe.
8 Que Deus nos abençoe. E o
temerão todos os confins da terra.
O verso 2
reproduz com adaptações[2] a
bênção sacerdotal (Nm 6:24ss). Provavelmente, o povo unido pedia a bênção
divina, sem inventar algo novo, mas somente repetir o ensinado na Torah.
Digo “provavelmente” por nosso limitado conhecimento a respeito da performance
dos Salmos, e por julgar possível uma entoação responsiva entre sacerdotes e povo,
com este último cantando, por exemplo, somente o refrão.
O
verso 3 expressa uma finalidade da bênção rogada. Essa finalidade não se
restringe ao povo hebreu, que figura como o destinatário direto da bênção e da
graça cantadas anteriormente. A intervenção de Deus visa dar a conhecer seu
caminho e sua salvação entre todos, os de fora inclusive. O refrão e os versos
restantes reafirmam essa expectativa.
O
refrão (v. 4 e 6) diz que “os povos” (עַמִּ֥ים) celebrarão אֱלֹהִ֗ים, Deus. Em seguida,
expande enfaticamente: “os povos todos” (עַמִּ֥ים כֻּלָּֽם). O verbo hebraico está
no incompleto, podendo sim referir-se ao que ocorre no momento, como se fosse
uma expressão performativa, mas também pode indicar algo futuro, algo que ainda
permanece com o estatuto de um desejo ou um prenúncio (cf. Sl 22:28).
O
verso 5 expressa a realidade, possivelmente despercebida, do governo e juízo
universais de Deus (1 Sm 2:10). O Deus dos hebreus não restringe seu domínio
aos limites geográficos de seu povo, afinal, conforme a Torah, toda a
humanidade é feitura dele, e não de outros deuses responsáveis pelos diferentes
povos.
Os
versos finais resumem a proposta do Salmo por meio de uma construção poética
notável. O verso 7 começa com אֶ֭רֶץ, terra, substantivo com que se encerra o verso 8. Há um certo
cruzamento visual/sonoro. O mesmo ocorre com as duas outras metades desses
versos como um todo. A segunda metade do 7 é, em grande parte, repetida na
primeira metade do 8. Essa repetição é enfática e relevante para o sentido desses
versos, bem como para todo o poema. Assim como não são “os povos” (a), mas “os
povos todos” (a’) que celebram a Deus (v. 4 e 6), não é simplesmente Deus (b),
mas “nosso Deus” (b’) que nos abençoa. Há uma especificação progressiva
simétrica (a-b / a’-b’). A noção de povo é expandida enquanto, de modo
simetricamente oposto, a identidade da divindade é mais delimitada. Somada a
isso, a repetição no começo do verso 8 é importante, ainda, como esclarecimento
do início do verso 7.
Se
a terra é sujeito do verbo “deu”, alguém poderia supor que por si mesma,
naturalmente e independente do governo divino, ela dá o fruto dela mesma. Esse
fato aparentemente natural e espontâneo, contudo, é contado como resultado da
ação abençoadora de um Deus específico. O reconhecimento disso, por sua vez,
deve produzir temor em todos os confins da terra. Esse temor não é fim em si
mesmo. Na concepção bíblica, e dos Escritos em especial, o “temor de יהוה” é princípio do conhecimento (דָּ֑עַת) (Pv 1:7). O leitor
atento perceberá que somos remetidos de volta ao primeiro par de versos. A
bênção de Deus se faz para produzir conhecimento (לָדַ֣עַת). De certa forma, há uma
estrutura anelar no poema, ainda que para acessá-la seja preciso conhecer a concepção
da tradição sapiencial hebraica. [3]
Parece-me
possível dizer que o Salmo reproduz o sentido da existência de um povo
escolhido. Esse sentido não é centrípeto, mas centrífugo.
Em
perspectiva cristã, podemos ler essa expectativa de que o testemunho da
experiência da bênção divina expanda o conhecimento do Messias entre os povos,
até os confins da terra (At 13:46-48 / Is 49:6 e 52:10 / Sl 98:3). Essa
interpretação messiânica é facilitada pelo uso dos termos דַּרְכֶּ֑ךָ (“teu caminho”) e יְשׁוּעָתֶֽךָ (“tua salvação”) no verso 3. Jesus
se apresenta justamente como o caminho (Jo 14:16), e assim são nomeados seus
primeiros seguidores em Atos. Além disso, Jesus identifica-se com a
salvação divina em sua obra e em seu nome. O verso, assim, apresenta uma teleologia
evangélica para a dádiva divina, no sentido de que expressa uma finalidade
de proclamação da Boa Nova. A boa notícia da graça de Deus manifestada na coisa
comum, a agricultura, é cantada como prenúncio da Boa Notícia da Graça
manifestada futuramente (no tempo oportuno) no evento especialíssimo da cruz. O
ciclo de morte (da semente) e vida, da plantação vicejante e nutriz, próprio do
cultivo, aponta para morte e ressurreição do Cristo de Deus.
Aplicação
O
Salmo motiva o fiel que o lê/entoa a olhar com gratidão para os feitos de Deus
e com disposição de hospitalidade para os de fora. Além disso, exemplifica uma
proclamação convidativa e acolhedora, e não um exibicionismo particularista e
revanchista. A esperança de salvação é para todos na Terra. O Deus que julga
todas as nações (Lei) é o mesmo que age com misericórdia e graciosidade
(Evangelho).
Essa
percepção foi fundamental para a vivência da fé cristã desde as primeiras missões
dos apóstolos, e ainda é até em nossos pequenos gestos no trato com nossos concidadãos.
Cesar Motta Rios
cesarmottarios@gmail.com
(Observo que não tenho muita experiência no estudo da poesia hebraica. Além disso, este é um trabalho simples, breve, sem pretensões. Sugestões sempre serão bem-vindas)
[1] As marcações
adicionais devem ser desconsideradas na primeira leitura, servindo para
facilitar a localização de detalhes apontados no decorrer do texto.
[3] Note-se que o
refrão divide os versos do poema em três grupos: 2-3, 5 e 7-8. O primeiro
apresenta o pedido e seu objetivo. O segundo expõe a atuação de Deus no todo. O
terceiro reafirma o primeiro, mas já apresentando a bênção como algo dado, e
esperando somente a consumação de seu objetivo final.
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